Loucos por Ford – Histórias de um “Pé de Bode”

Fotos: Divulgação

Pé de Bode não é um apelido comum. Porque, então, um simpático Ford A Roadster 1929 foi batizado assim? Fernanda Mazzini, da Folha de Londrina conta, numa matéria histórica, que as duas alavancas do acelerador e do distribuidor presas ao volante renderam, pelo interior do Brasil, diversos nomes populares ao veículo, entre eles “pé de bode”, “chimbica” e, o mais famoso, “Ford bigode”.

As lembranças e memórias estão em todas as peças do Ford Roadster Standard 1929. O modelo A foi o primeiro veículo do avô do médico urologista Celso Fernandes Júnior, importado diretamente dos Estados Unidos. Uma relíquia original da indústria automobilística, mas que fortaleceu o elo entre o passado e o presente da família Fernandes, reavivou histórias perdidas, resgatou origens e fortaleceu laços de amizade.

O espanhol Antonio Fernandes y Fernandes – o avô do médico – chegou ao Brasil aos 17 anos, em 1923. Parte da sua família já havia se estabelecido no interior de São Paulo, quando o rapaz veio ao País para ganhar a vida. Trabalhando como negociador de café, juntou dinheiro e comprou o carro. O modelo A, que já tinha rodas de metal, era novo no mercado e viera para substituir os modelos T, até então com rodas de madeira.

Negócio fechado e o Ford A chegou dos Estados Unidos em um ”caixote” via Porto de Santos. Como poucas pessoas sabiam dirigir naquela época, foi contratado um piloto para levar o veículo até Guará (SP), onde a família morava. O modelo A – fabricado entre 1928 e 1932 – logo fez história no Brasil e ganhou vários apelidos: pé de bode, chimbica e Ford bigode, devido às duas alavancas do acelerador e do distribuidor presas ao volante. Alto e com pneus finos não ficava parado nos atoleiros do interior.

O veículo, para quatro pessoas, ainda tinha o ”compartimento da sogra”, um banco separado dos demais, na traseira, sem proteção de capota. Seguindo na trajetória dos imigrantes que ajudaram o desenvolvimento do País, na década de 30, parte da família Fernandes decidiu apostar na fertilidade da terra vermelha do Norte do Paraná e, em 1935, Antonio Fernandes y Fernandes fincou raízes em Porecatu.

O Ford Roadster ficou em Guará. O passar dos anos paralisou o veículo em um cavalete até a década de 60, quando, um dos filhos do espanhol, Celso, decidiu buscar o carro e investiu na sua primeira reforma. Não ficou original, mas era o suficiente para voltar a rodar. Naquela década, Londrina já fervilhava, atraía pessoas e gerava riquezas, momento ideal para a instalação da primeira emissora de televisão: a TV Tibagi.

Para a festa de inauguração foi organizada a ”Corrida do Calhambeque”, que fechou a rodovia que liga Londrina a Apucarana. Eram duas categorias: 4 e 6 cilindros. O Ford 29 foi inscrito na primeira e fez bonito. Um piloto profissional, contratado do Autódromo de Interlagos (SP) especialmente para a prova, levou o modelo à vitória. Foram dois troféus: o de campeão pelo trajeto concluído em primeiro lugar e o de originalidade.

E, novamente, o passar dos anos impôs o cavalete ao velho Ford, desta vez, até o reencontro com o neto Celso Fernandes Júnior. Parado em um galpão na fazenda da família em Porecatu, o carro pertencia ao seu irmão, que o havia herdado em um sorteio feito pelo pai pouco antes de morrer, em 91. ”Fiquei frustrado porque sempre pensei em ficar com ele (o Ford A)’‘, confessa. Mas a história do carro e do homem ainda não estava encerrada. Um dia na fazenda, ao rever o veículo ali parado, abriu o seu capô e retirou a buzina. Com as lembranças de volta, decidiu restaurar o equipamento e depois o entregou ao irmão.

Foi quando confessou o seu interesse em ficar com o veículo. Negócio fechado por R$ 1, mas com direito a recibo de compra e venda, a história do velho Ford foi reiniciada: ele seria restaurado e voltaria a ganhar ruas e estradas. Inexperiente, Celso Fernandes acreditou que em seis meses o veículo estaria novo. Ficou pronto em cinco anos.

Não entendia nada de carro antigo, então, decidi entrar em contato com o Clube do Carro Antigo de Londrina”, lembra o médico. Foi quando recebeu dicas de alguns sites americanos, onde poderia encontrar as peças originais. Para começar, comprou a coleção de livros de restauração, que ensinava como restaurar veículos fabricados entre 28 e 32. O carro foi todo desmontado, para recomeçar do zero. ”Tudo funcionava, o motor estava perfeito, mas algumas peças não eram originais porque na primeira reforma foram feitas algumas adaptações”, comentou Celso Jr.

O primeiro passo foi fazer uma limpeza no motor e o jateamento das peças. Depois, com o manual da restauração em mãos, novas histórias foram sendo redescobertas. ”Pude entender a filosofia do Henry Ford na construção dos carros. Cada detalhe foi pensado por ele e descobri muitas coisas interessantes”, diz. Um exemplo é a tampa do radiador, que são três: a primeira é convencional; a segunda tem a ilustração de um pato americano porque Ford era caçador e a terceira tem uma águia, uma homenagem ao povo americano. A peça ainda tem um termômetro de mercúrio, que registra a temperatura.

E, a cada dia, eram novas descobertas. Fernandes conseguiu descobrir a data exata em que o carro foi fabricado: 8 de maio de 1929. Isso porque a data era cravada no tanque de combustível, que depois recebia uma pintura. ”Mas, ao invés de esconder esse número, procurei ressaltá-lo e deixá-lo a mostra. Todos esses detalhes nos trazem paixão pelo carro e pela restauração. Não foi nada trabalhoso, ao contrário, tivemos muitos momentos agradáveis”, salienta.

A restauração toda foi feita em Porecatu por profissionais que já conheciam o carro. Assim, além de resgatar as amizades, novas lembranças voltaram à tona. Uma delas – ou melhor duas – são mais concretas. Celso Fernandes conseguiu reaver as duas taças ganhas pelo carrinho na corrida de inauguração da TV Tibagi. Os troféus estavam com mecânicos e haviam sido doadas por seu pai.

 

Curiosidades

Todo esse processo rendeu muitas histórias curiosas. Uma delas foi a instalação do escapamento. Em uma operação batizada de ”escapamentoscopia”, o equipamento que antes era de lata ganhou uma versão idêntica em aço inox. O médico queria instalar o escapamento com esse último material, que apresenta maior durabilidade. No entanto, Fernandes não sabia como era o seu formato interno, item fundamental para manter o mesmo som do motor. Um amigo seu tinha comprado a versão em lata e, então, ele pediu emprestado.

Depois de estudar toda a sua configuração externa surgiu a ideia. Assim como nos exames em que os médicos precisam enxergar o funcionamento de algumas partes do corpo humano, o escapamento passou por um ”exame” semelhante a uma endoscopia. Com a ajuda de um amigo e um retosigmoidoscópio o médico – agora também especialista em escapamentos – conseguiu ver todo o seu interior. Tirou as medidas dos multifuros existentes e encomendou um igual.

A capota do carro também rendeu outra história. O proprietário não queria copiar o modelo, mas sim instalar uma original, com o mesmo tecido da época. O problema era importar, uma vez que pelas suas estimativas o item – fabricado de um tecido grosso – pesava cerca de nove quilos. Mas novamente o destino estava a seu favor. Certo dia um paciente chegou a seu consultório precisando de uma cirurgia de próstata.

A operação precisava ser feita com uma certa urgência porque o paciente viajaria para visitar a filha, que havia se mudado para os Estados Unidos. A cirurgia foi feita e a negociação deixada para o pós-operatório. O preço cobrado: trazer a capota americana. Assim, o médico encomendou o equipamento por meio de um site americano, mandou entregar na casa da filha do paciente, que deveria apenas trazê-la a Londrina. A surpresa: a capota original pesava 18 quilos.

E cada momento do carro tem uma história. Não fiz nada sozinho, muitos trabalharam para isso. Era um projeto que eu imaginava ser simples, mas que foi muito complexo e fiz isso com muita satisfação, fiz muitas amizades’‘, salienta Fernandes. Depois da reforma o carro ganhou placa preta, concessão do Departamento Nacional de Trânsito a todos os veículos com mais de 30 anos e que permanecem com mais de 85% das peças originais. ”O meu (Ford A) só não é 100% porque troquei a bateria original de 6 volts por uma mais potente, de 12 volts”, explica.

Agora alçado à condição de carro de passeio, o Ford A sai de casa quase todos os finais de semana. A manutenção, segundo o médico, é pouca. E o preço da restauração? ”Ah! Não dá para falar, nem a esposa sabe”, confessa para completar: ”mas não é o preço exorbitante que muitos acreditam. O valor das peças (importadas) é semelhante ao (valor) das peças nacionais”. O problema, segundo ele, é a alíquota de importação, considerada alta pelos colecionadores.

No entanto, a restauração e o resgate da história da família são considerados como o grande valor do Ford A. ”O meu carro não tem preço. É a história da minha família. Eles motivaram isso (a restauração)”, valoriza. Por isso, ele contou que já conversou com o filho, hoje com 16 anos, para expressar um desejo: quer que o veículo passe o seu centenário em propriedade da família, daqui a 19 anos. Também acredita que não faria tudo isso se não fosse o valor sentimental. ”Não faria um outro carro”, diz.

Depois de quase um século de história e unindo três gerações, o Ford A virou estampa de cartão telefônico da operadora em Londrina, há dois anos. Ganhou 110 mil edições e reuniu aficionados colecionadores – por cartões e veículos antigos – impressionados com a sua raridade. Coisas da vida que não têm preço.

Fonte: Ford para Todos

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